quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Quem tem olhos para ler, leia.

A Justa imoralidade
por João César das Neves

Na actual confusão moral da civilização ocidental existe uma surpreendente ordem subjacente. Se usarmos a estrutura ética clássica vê-se que o nosso tempo despreza todas as virtudes que ordenam a pessoa a si própria e exalta as que regulam a relação com os outros.

Este facto insólito é evidente, mas passa despercebido porque hoje quase ninguém conhece a doutrina clássica das virtudes. Isto mostra que a referida confusão moral nasce basicamente de um problema de conhecimento. A principal dificuldade ética da actualidade é que se ignoram os critérios e se lhes desconhece a fundamentação. As pessoas hoje são, não tanto más, mas sobretudo ignorantes.

É evidente que, no confronto global com as outras culturas, as nossas tradições morais soçobraram rapidamente. Hoje o Ocidente tem mais conhecimento e interesse pela filosofia de Confúcio, Buda ou Maomé do que familiaridade com a moral de Aristóteles, Cícero e S.Tomás. Isto vê-se bem nas livrarias. Parece que todo o edifício secular da ética ocidental se desmoronou neste século. A origem da fragilidade é fácil de identificar. Desde a reforma protestante, a civilização europeia entrou num corropio de filosofias que foi minando a sua solidez. Ao racionalismo seguiu-se o iluminismo, o utilitarismo, o materialismo, o existencialismo.

Após quase 500 anos de deriva, a filosofia moral contemporânea caiu no relativismo emotivista, onde o critério é o capricho.

Quer isto dizer que se vive actualmente num vazio moral? Não. Existem, pelo contrário, aspectos em que a ética atingiu hoje níveis de elevação nunca antes imaginados. Nós vivemos no tempo que definiu os direitos humanos, que mais lutou contra o racismo e a discriminação e mais reduziu a pobreza e a tirania. Nunca, em qualquer época ou civilização, houve tanto esforço e empenhamento público e privado para criar justiça social, igualdade de direitos, harmonia e cooperação internacional. Com leis e organizações, esforços comunitários e pessoais, o nosso tempo conseguiu avançar muito na criação de uma sociedade justa e igualitária.

É verdade que continuam a existir corrupção, abusos, ditaduras, pobreza, roubos e morticínios. Mas esses factos, que sempre se verificaram, são hoje geralmente repudiados com um vigor e uma unanimidade nunca igualadas. Apesar de a opinião pública parecer tolerar crimes graves, como o aborto, temos de dizer que, em geral, avançou-se muito no campo da justiça. Aliás, do alto dessas realizações, o nosso tempo erigiu-se mesmo em juiz da História, e repudiou o seu passado porque nele existiu escravatura, colonialismo, discriminação das mulheres, miséria e desigualdade.

Assim, olhando para a justiça, nas suas múltiplas realizações sociais, temos de dizer que somos mais virtuosos que nunca. Mas, além dela, existem também outras virtudes morais para ordenar a relação de cada um consigo mesmo. E, curiosamente, se o nosso tempo atingiu grande elevação nas virtudes sociais, ele ignora quase completamente as virtudes pessoais. Quando confrontado com os seus desejos, instintos e paixões naturais, o ser humano actual ignora critérios. Mais um problema de conhecimento.

Na alimentação, no modo de vestir e de falar, no sexo, no luxo, a humanidade ocidental não exige qualquer ordem, para além do impulso do momento. Desde que não prejudique os outros - ou seja, não levante problemas de justiça - cada um pode fazer o que quer. A temperança, a castidade, a honra, a modéstia, a paciência, a magnanimidade, a humildade são, em geral, desconhecidas. A simples menção dessas virtudes suscita risos ou indignação. Elas são vistas como imposições de velhos, que prendem as pessoas numa vida chata e seca, e levantam graves limitações à liberdade pessoal.

O nosso tempo confunde liberdade com falta de critério.

O fundamento secular destas virtudes vem, tão só, da busca da felicidade pelo domínio racional dos instintos e o equilíbrio no comportamento.

Um tempo tão humanista como o nosso deveria compreender tal esforço, mas simplesmente despreza-o. Nada tem a dizer sobre isto, a não ser no campo legal, dos direitos e liberdades, porque trata todas as questões como se fossem de justiça. Mas a questão não é de leis. É de atitudes.

A nossa sociedade, muito exigente na ética relacional, desconhece simplesmente os critérios do comportamento pessoal. As teorias ecológicas e naturistas dos nossos dias até exaltam os instintos corporais. As consequências deste desequilíbrio são os múltiplos comportamentos insólitos, aberrantes ou simplesmente ridículos que vemos. E a profunda miséria moral que eles manifestam. O prazer substituiu a felicidade.

A extravagância, o exagero, o exibicionismo são hoje admirados e incentivados. Não há limites na ambição, no orgulho, na curiosidade. O suicídio e a eutanásia são aceites. A droga domina e o pudor é um conceito desconhecido. Perante o normal fascínio dos jovens pelo sexo, dizem-lhes que tudo é permitido, se evitarem a sida e a gravidez. Embebedar-se é brincadeira e comer com excesso é um feito. A família tem por finalidade apenas o prazer egoísta e, por isso, é instável e multiforme. Em certos casos, voltou-se mesmo ao paganismo mais boçal dos cultos báquicos.

O projecto moral da nossa sociedade é o de criar severas regras comunitárias e uma forte rede de relações sociais, mas entre pessoas sem critérios no seu comportamento íntimo. Os pensadores, do parlamento à televisão, apregoam a força da justiça e o vácuo de virtudes pessoais.

Claro que, na vida concreta, as pessoas não podem deixar de seguir as "virtudes antiquadas", pois seria impossível viverem uma vida equilibrada sem elas. Mas fazem-no de forma desordenada e inconstante, porque lhe falta a fundamentação. Sempre o problema de conhecimento.

O resultado está à vista. Vivemos na primeira civilização que busca ansiosamente a justiça mas se esqueceu da honra. E que, apesar de nadar em prazeres, não consegue ser feliz.


Diário de Notícias,18de Outubro de 1999

2 comentários:

Cacao disse...

cassi, qual é o teu blog?

Susana Pereira disse...

o blog da cassi é: psicolaranja.blogspot.com

;) Susana